A Filosofia do Caos em ‘Coringa’: Sociedade ou Livre-Arbítrio?

O filme Coringa (2019), dirigido por Todd Phillips e estrelado magistralmente por Joaquin Phoenix, não é apenas um drama sombrio sobre um vilão icônico da cultura pop. É uma análise filosófica intensa sobre o caos, a marginalização social e o papel do livre-arbítrio na formação da identidade humana.

Mas, afinal: o Coringa é produto da sociedade ou um agente do caos por escolha própria? Essa pergunta atravessa o filme do início ao fim e nos convida a refletir sobre a origem do mal, a responsabilidade pessoal e os limites da empatia.


O Nascimento do Caos: Arthur Fleck e a Exclusão Social

Arthur Fleck, antes de se tornar o Coringa, é um homem fragilizado pela vida: vive em condições precárias, sofre de transtornos mentais, é negligenciado pelo sistema de saúde pública e constantemente humilhado em seu ambiente de trabalho e na rua. Sua existência parece um acúmulo de fracassos, abandonos e violências silenciosas.

Essa construção da narrativa ecoa uma crítica social profunda: qual é o papel da sociedade na criação de seus próprios monstros? O abandono sistêmico vivido por Arthur funciona quase como um experimento social: até onde um ser humano pode aguentar antes de romper completamente com a lógica moral?


O Coringa e a Filosofia do Caos

À medida que Arthur se transforma em Coringa, sua visão de mundo muda radicalmente. Ele abandona qualquer noção de ordem ou justiça. Em seu discurso no talk show de Murray Franklin, Coringa diz:

“O que você ganha quando cruza um doente mental solitário com uma sociedade que o abandona e o trata como lixo? Você ganha o que merece.”

Essa frase encapsula sua filosofia: o caos como resposta à indiferença do mundo. No universo do Coringa, não há moral objetiva, não há heróis ou vilões — apenas indivíduos tentando sobreviver em um sistema quebrado.

Esse ponto de vista se aproxima de pensamentos niilistas, onde o mundo é essencialmente sem sentido, e qualquer tentativa de impor ordem é uma ilusão.


Livre-Arbítrio ou Determinismo Social?

Uma das maiores questões filosóficas que o filme levanta é: Arthur escolheu ser o Coringa ou ele foi empurrado até lá?

Por um lado, o filme constrói uma narrativa em que Arthur é claramente uma vítima. Mas, por outro, quando ele abraça sua nova identidade, ele o faz com consciência — e até prazer. O assassinato de Murray no ar, transmitido ao vivo, é o símbolo de sua libertação total da moralidade tradicional.

Essa dualidade nos força a pensar em temas como:

  • Livre-arbítrio: Ele teve a escolha de não se tornar o Coringa?
  • Responsabilidade: Mesmo com tanto sofrimento, ele ainda é responsável por seus atos?
  • Culpa coletiva: A sociedade tem parcela de culpa pela criação do monstro?

Filosoficamente, essa discussão se alinha com o debate entre existencialismo e determinismo social. Sartre, por exemplo, diria que Arthur sempre teve escolha, mesmo nas piores circunstâncias. Já teóricos críticos, como Foucault ou Adorno, poderiam argumentar que a estrutura social molda e limita radicalmente o comportamento humano.


A Máscara como Liberdade

Outro elemento interessante é como Arthur se transforma por completo ao adotar a persona do Coringa. A maquiagem, o figurino, a dança — tudo isso simboliza uma libertação da repressão social. A máscara não esconde quem ele é; revela aquilo que ele sempre quis ser, mas nunca pôde.

A cena em que ele dança nas escadarias é emblemática: pela primeira vez, ele se sente livre. A sociedade tentou moldá-lo, controlá-lo, ignorá-lo. Ao se tornar o Coringa, ele assume o controle da própria narrativa — ainda que essa narrativa seja marcada pelo caos e pela violência.


Coringa como Reflexo da Sociedade Moderna

Coringa não é apenas sobre um homem que enlouquece. É sobre um sistema doente que cria seus próprios monstros e depois se choca quando eles explodem. A Gotham do filme é um espelho distorcido da nossa realidade: desigualdade crescente, ausência de saúde mental, desumanização dos pobres, mídia que ridiculariza os marginalizados.

A filosofia do caos, nesse contexto, não é apenas uma ruptura — é uma acusação violenta contra a hipocrisia coletiva. Coringa não quer ser compreendido, ele quer ser visto. Quer que a sociedade encare o próprio reflexo e sinta vergonha.


Conclusão: O Riso do Caos

No fim das contas, o Coringa de Joaquin Phoenix nos deixa desconfortáveis porque não conseguimos defini-lo com clareza. Ele é vítima e vilão. Louco e lúcido. Caótico, mas incrivelmente coerente dentro da própria lógica distorcida.

E talvez esse seja o verdadeiro poder do personagem: ele nos força a sair do preto e branco e encarar os tons de cinza da existência humana.

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